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Mãos Cheias de Nada

Retalhos dos meus dias tristes...

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Retalhos dos meus dias tristes...

22.Dez.16

Declínio dos Afectos

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“Tudo começa com uma televisão ligada. E depois vem um computador, um jogo, um jantar de amigos. Aos poucos o mundo afasta quem se ama. Houve demasiado mundo a separar-nos, e nem o refúgio final de uma cama conseguimos preservar.” Pedro Chagas Freitas, in Prometo Perder

 

A preguiça induz-nos a um coma profundo, em que, ligados às máquinas, nos vamos despedindo lentamente, vítimas de um tanto faz, de uma comodidade quase conveniente. Guardamos os sonhos numa qualquer gaveta e olhamos para o futuro com o tempo contado. A solidão a dois, no mesmo lugar, afasta, repele.

A mesmice é uma dura realidade. A multiplicidade de tarefas e os reveses do dia-a-dia, o trabalho, os amigos, a família, sugam-nos para uma rotina, em que a dedicação ao outro é transportada para segundo plano. A armadilha da monotonia encarcera-nos, toma conta de nós e altera-nos prioridades. Vítima do tempo, o riso fácil dá lugar a uma apatia torturante, o diálogo fica lá atrás, e um beijo, um abraço, um colo, cai no esquecimento. A falta de carinho transforma-se em cobranças, exigências e os gestos de afecto dão lugar ao vazio. Desvanece-se a beleza das pequenas coisas e o prazer da simplicidade desaparece.

“O animal satisfeito dorme”. Dormir e acordar com a mesma pessoa diariamente ano após ano satisfaz a nossa necessidade de segurança, mas, seduzidos pelo repouso, pelo conforto de quem está sempre ali, entregamo-nos a uma comodidade que acalma, amortece, esquecendo que essa satisfação conclui, encerra. O ser humano, quando plenamente confortável, descansa, adormece entregue a uma monotonia afectiva que aprisiona, não deixando margem para a continuidade, para a procura, para a persistência.

Na verdade, quem quer partilhar tristezas? Viver lado a lado com desilusões? Quem quer passar noites sem dormir, aguentar maus humores, dividir tempo, ceder vontades e ainda sentir torturas psicológicas? São muitas as dificuldades e os desgastes que os relacionamentos enfrentam. E não é possível viver das memórias, do que ficou lá atrás, do que fomos e não voltámos a ser. Ninguém sobrevive de momentos, meras migalhas de amor, rasgos de um passado longínquo. E na ausência a vontade de ir aumenta e o desalento instala-se. A honestidade dos momentos partilhados dá lugar a um terreno lavrado pela dúvida e pela desconfiança. Cada dia a mais neste limbo corrói, termina, varre a esperança e a escolha egoísta da distância é inevitável. O silêncio torna-se ensurdecedor. O cansaço expulsa-nos. Os afectos vão-se apagando e o medo de perder vai cedendo à dúvida do desistir. A indiferença é letal, a distância emocional cava abismos e o egoísmo sela os olhos. Passa-se a viver num imaginário. Um mundo faz de conta. Nenhuma cama embala o sono quando nos subtraímos constantemente. Somam-se noites vazias. Passamos a sentir falta de tudo, inclusive do que não tivemos, do que poderia ter sido, dos sonhos que ficaram por viver.

As pequenas situações quotidianas vão dando origem a diferenças, problemas que se vão negligenciando apenas para evitar uma discussão, acabando por desgastar ainda mais a relação do que a própria discussão em si. Assumimos comportamentos passivos, somos autênticos evitadores de conflitos, renegando a importância da honestidade. A sinceridade é tão fundamental, não apenas no que toca à verdade, mas no confronto das nossas emoções. Reconhecer o que estamos a sentir e mostrá-lo com clareza permite desdramatizar as situações. Mas esquivamo-nos de manifestar o nosso desagrado, esperando que o outro lado perceba. Fazemo-lo para evitar o confronto e esquecemo-nos da proporção que a espera pode tomar. Outras vezes escondemo-nos atrás de um optimismo exacerbado como forma de reagir às adversidades, acabando por relativizar em demasia e nem damos conta que estamos a retirar importância à outra parte. E mesmo no silêncio criam-se braços de ferro intermináveis. Este descompasso de sentimentos leva muitas vezes a que uma das partes assuma comportamentos que vão contra o relacionamento e quando o outro aceita passivamente essas alterações, a mágoa é imediata e crescente. O foco desvia-se e a atenção recai sobre tudo aquilo que nos afasta da relação retirando a possibilidade de qualquer renovação. Esquecemos por completo o brilho do início e ficamos de olhos postos no fim, tantas vezes mais fácil que enfrentar os desencontros.

É preciso compreender o que é saudável para a segurança e estabilidade do relacionamento para se tomar a decisão certa. É preciso sair desta areia movediça que nos suga e em que nada de bom cresce.

A arte de uma vida a dois não tem necessariamente que passar pela eliminação dos problemas, mas sim pela aprendizagem constante. Compreender e aceitar que existem problemas sem solução, permite-nos aprender a geri-los, aprender a ceder. Por vezes implica pequenas perdas para cada uma das partes, mas se a relação continuar protegida ambas as partes ganham. O agradecimento, o elogio, a demonstração de carinho fazem parte do ritual da conquista, mas quando a sua importância é renegada antecipam-se finais. Reforçar estes laços impede que a intimidade se perca. É preciso parar de olhar para o nosso próprio umbigo e valorizar o que temos a nosso lado. Mostrar com regularidade e clareza a importância que alguém tem na nossa vida. Mostrar genuinamente o que se sente. É preciso ir solucionando as diferenças a tempo de evitar grandes conflitos tantas vezes originados apenas pelo acumular de pequenos desacordos mal resolvidos. Às vezes o recomeço é necessário. E é sem dúvida um caminho sinuoso. O recomeço significa assumir que algo chegou a um fim, porque fracassámos, porque desistimos, porque nos cansámos. E no recomeço o esforço tem que ser maior, porque sabemos o que nos espera, sabemos o que já tivemos e sabemos inclusive onde poderemos fracassar novamente. Efectivamente o factor surpresa do novo, do começo, tem um fascínio que nos faz correr atrás, a curiosidade impulsiona, cria adrenalina e por isso tantas vezes pulamos para infidelidades efémeras e vazias de afectividade. Relações voláteis, descartáveis.

O difícil é manter o amor vivo dentro de nós e trazê-lo para a relação. Difícil é amar depois de discussões que parecem incessantes, difícil é amar depois de nos decepcionarmos. Difícil é amar quando apenas o choro é nossa companhia. Difícil é amar quando o mundo lá fora brilha e cá dentro a tempestade impera. Difícil é reapaixonarmo-nos frequentemente por quem está a nossa lado há anos. Difícil é saber que o amor não basta. Não resolve contratempos. Não enfrenta todos os desafios. É difícil, complexo, dá trabalho, exige esforço, adaptação, cedências, pede paciência, dedicação. É preciso cultivar, reinventar, ressignificar, redescobrir. Mas vale a pena insistir no que nos faz bem, no que não se esgota.

 

Não temos que amar por tudo a tempo inteiro, mas sim apesar de tudo… e apesar do tempo...